SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise
histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez.
1995
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e Educação: uma
perspectiva pós-estruturalista. São Paulo:Vozes, 1997.
Este
trabalho se propõe a apresentar as ideias das referidas autoras quanto a
temática de gênero em seus atravessamentos e transversalidades.
Em
Gênero, Sexualidade e Educação, a
autora apresenta conceitos e teorias no campo dos estudos feministas e suas
relações com a educação, estuda as relações do gênero com a sexualidade, as
redes do poder, raça, classe, a busca de diferenciação e identificação pessoal
e suas implicações com as práticas educativas atuais.
Já em Gênero: uma
categoria útil de análise histórica,
a ideia nuclear é a de que gênero é usado para enfatizar o cunho social das
diferenças entre os sexos e que o termo possibilita um rompimento com o estigma
do sexo.
Guacira
Lopes Louro inicia propondo um rompimento com o pensamento dicotômico masculino
em oposição ao feminino, alegando que esta é uma visão reducionista e que as
relações de gênero se produzem na e pelas
relações de poder.
Scott
também evidencia as relações entre gênero e
poder, alegando que ainda que não seja o único campo de articulação do poder, o
gênero é a primeira instância dentro da qual, ou por meio da qual, o poder se
articula. Afirma que os conceitos de gênero estruturam a percepção e a
organização de toda a vida social, influenciando as concepções, as construções,
a legitimação e a distribuição do próprio poder.
Para essa autora
o gênero implica
quatro elementos relacionados entre si:
1) símbolos culturalmente
disponíveis que evocam representações múltiplas;
2) conceitos normativos que colocam
em evidência a interpretações do sentido dos símbolos. Esses conceitos são
expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou
jurídicas
3) noção de fixidade da categoria de
gênero ao sistema de parentesco, impossibilitando uma visão mais ampla que
abarque a realidade da sociedade, das relações de trabalho, da educação, dos sistemas
políticos, da economia, etc.
4) identidade subjetiva: o gênero
torna-se implicado na concepção na construção do poder em si, sendo ainda, um
meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre
diversas formas de interação humana.
No primeiro capítulo de seu livro,
Guacira procede a uma construção histórica sobre o termo e suas representações
mais significativas. O conceito de gênero para a autora, está diretamente
ligado a história do movimento feminista, implicado lingüística e politicamente
em suas lutas. Scott reafirma a questão da produção do conceito enfatizando que seu sentido foi importado da
gramática, passando mais tarde a referir-se à organização social das relações
entre os sexos, realçando-se o caráter cultural das distinções baseadas no
sexo.
O sufragismo,é caracterizado por
Gaucira como a “primeira onda” importante do movimento feminista. No final da
década de 1960, além das preocupações sociais e políticas, dá-se inicio as
contruçoes propriamente teóricas, sendo engendrado e problematizado o conceito
de gênero caracterizando-se assim a “segunda onda.” No Brasil, foi no final dos
anos 80 que as feministas começam a usar o termo gênero.
“Militantes feministas participantes
do mundo acadêmico vão trazer para o interior das universidades e escolas questões
que as mobilizavam, impregnando e "contaminando" o seu fazer
intelectual — como estudiosas, docentes, pesquisadoras — com a paixão política.
Surgem os estudos da mulher.”
(LOURO, 1997, p.16). Segundo a autora, tornar visível aquela que fora
ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primeiros
tempos.
Sobre
isso Scott faz uma crítica aos trabalhos que utilizam o termo gênero para abarcar as
mulheres sem referenciá-las explicitamente. Essa tentativa de despolitizar a
inclusão das mulheres na história seria fruto, segundo ela, de uma
tentativa de legitimação acadêmica.
Também critica
as pesquisas que apesar de analisarem as relações sociais entre homens e
mulheres atém-se somente ao estudo de certos setores da organização social, como
a família, a reprodução, as ideologias de gênero. Estas pesquisas realçam o
mero uso do termo gênero, sem uma mudança de perspectiva teórica, o que faz com
que estes trabalhos continuem a estudar “as coisas relativas às mulheres”, de
forma descritiva, sem que se questione porque as relações entre homens e
mulheres estão construídas como estão,.
Para Guacira, uma das mais
significativas marcas dos Estudos Feministas foi seu caráter político.
“Objetividade e neutralidade, distanciamento e isenção, que haviam se
constituído, convencionalmente, em condições indispensáveis para o fazer
acadêmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos.”(LOURO, 1997, p.19)
O argumento da diferenciação
biológica passa a ser cada vez mais um argumento irrecorrível. É preciso demonstrar que não é esta a origem
da diferenciação, mas “a forma como essas características são representadas ou
valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir,
efetivamente, o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado
momento histórico.” (LOURO, 1997, p.21)
A
pretensão, segundo a autora é então, entender o gênero como constituinte da identidade
dos sujeitos e sobre isso destaca que as identidades dos sujeitos não podem
ser entendidas como fixas, estáveis, como essências. “Ao contrário são
atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas,
construindo os sujeitos como masculinos ou femininos, arranjando e
desarranjando seus lugares sociais.” (LOURO, 1997, p.28)
Enquanto que na obra de Scott a
autora passa a analisar três posições teóricas
na análise do gênero, quais sejam, as teóricas do patriarcado, as marxistas, e
as de base psicanalítica, Guacira discute os atravessamentos entre gênero,
sexualidade e poder com argumentos baseados nas teorias de Michael Foucault, o
qual analisa as relações de poder e suas construções, que perpassam também
pelas relações de gênero. A autora discute essas relações a partir dos aspectos
de desigualdades e diferenças, pontos norteadores do gênero na
contemporaneidade e questiona buscando uma análise mais crítica do assunto
sobre o que é referência, quem são os diferentes, quem instituiu essa
padronização, o que é normal, o que é diferente, e principalmente, quais as
relações de poder que envolvem a permanência dessas referências.
Sobre os
posicionamentos teóricos, Scott apresenta a ideia de que as teóricas do
patriarcado defendem uma adaptação da teoria hegeliana, focando a teoria em
suposta necessidade dos homens em subordinar as mulheres para fins de controlar
os meios de reprodução da espécie. Em outras palavras, garantir que seus
herdeiros sejam de fato seus. Para essa corrente, revoluções tecnológicas que
eliminem a necessidade do corpo feminino para a reprodução seria o caminho da
libertação feminina. Ainda na “abordagem patriarcal”, há aquelas que
defendem ser o controle da sexualidade escopo do patriarcalismo. A sexualidade
feminina seria reificada na mesma proporção que o trabalho masculino. A
consciência dessa experiência de reificação, dessa vivência comum, levaria as
mulheres à ação política.
Crítica de
Scott: A teoria de patriarcado desenvolve-se em cima das distinções
físicas entre os sexos. Ao analisar essa única variante como fonte de toda
desigualdade de gênero, “a história se torna um epifenômeno que oferece
variações intermináveis sobre o tema imutável de uma desigualdade de
gênero fixa”. (SCOTT, 1995, p.29)
As feministas marxistas têm uma
abordagem mais histórica, já que elas são guiadas por uma teoria da história.
Os primeiros debates entre as feministas marxistas giravam em torno da rejeição
do essencialismo daqueles que defendem que “as exigências da reprodução
biológica” determinavam a divisão sexual do trabalho pelo capitalismo.
Adentrando o
viés da sexualidade e da psicologia, o volume de ensaios “ Powers of Desire”,
1983, foi uma tentativa, norteada pelos escritos de Foucault e pelo contexto da
“revolução sexual”, de se entender as relações de gênero como interação entre
“a sociedade e as estruturas psíquicas”. Segundo Scott, o único ensaio que
aborda seriamente as questões teóricas propostas é o de Jéssica Benjamin.
Crítica de
Scott: As dificuldades de desenvolvimento teórico encontram-se nas próprias
limitações da matriz marxista, que acaba sempre subordinando o conceito de
gênero ao de uma estrutura econômica, não tendo o gênero, seu próprio estatuto de análise.
Na teoria psicanalítica duas escolas
se destacam: a anglo-saxônica, que trabalha com
a teoria das relações objetais, e a francesa, que se desenvolve a partir do
pós-estruturalismo de Freud, nos termos da teoria da linguagem lacaniana. As
escolas têm em comum o enfoque nas etapas de formação do indivíduo, sob
perspectivas distintas.
A teoria das relações objetais
defende que a identidade de gênero é formada a partir de experiências
concretas, principalmente as vivenciadas domesticamente, como a divisão de
trabalho familiar, a atribuição de tarefas entre os pais. A teoria
pós-estruturalista da linguagem se prende aos sistemas de significação, o que
abarca não só as palavras, mas todo um sistema simbólico que se referenda no
gênero.
Crítica de
Scott: A teoria anglo-saxônica reduz a formação de identidade do sujeito a um
círculo muito restrito, como se não houvesse, além da família, outros sistemas
sociais que façam parte dessa construção. A escola francesa, ao entender o
sujeito sexuado como unidade instável, em permanente construção a partir da
oposição entre as significações masculino/feminino, articula castração com as
relações sociais, mas tende a universalizar as categorias masculino-feminino,
desconsiderando a especificidade e contexto histórico na construção da
subjetividade e reforçando o caráter de oposição binária do gênero.
As duas autoras
são unânimes na ideia de que reduzir gênero ao conceito de mulher é uma atitude
simplista e que as várias categorias
ou estruturas (raça, etnia, classe, gênero), não podem ser analisadas
isoladamente, já que a opressão de uma está inscrita no interior da outra, onde
“é preciso considerar gênero tanto como uma categoria de análise quanto como
uma das formas que relações de opressão assumem numa sociedade capitalista,
racista e colonialista” (LOURO, 1997, p.55).
Sobre a questão da diferença, Guacira
traz uma ideia importante reforçando o que já discutira em outros momentos do
texto, o fato de que por estar implicada em relações de poder, a diferença é
sempre nomeada a partir de
um determinado lugar que se coloca como referência e que a narrativa
convencional vê o gênero como um molde social. Assim, a hegemonia branca, masculina,
heterossexual e cristã, tem nomeado como diferentes aqueles e aquelas que não
compartilham desses atributos.
Já, sobre a construção escolar
das diferenças, Guacira nos leva a reflexão acerca de muitas situações e
conceitos que são naturalmente apropriados pelos sujeitos e que, como alerta a
autora precisariam se tornar alvo de atenção renovada, de questionamento e, em
especial, de desconfiança, pelos pré-conceitos que comportam.
Segundo a autora, a escola
ocidental moderna institucionaliza o processo de "fabricação" dos
sujeitos sendo este geralmente muito sutil, quase imperceptível, reforçando as desigualdades e diferenças. Os currículos,
normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos,
processos de avaliação e disciplina são constituídos e produtores das
diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe, entre outros. O que nos leva
a refletir sobre nossas práticas educacionais, como reforçamos e/ou produzimos
estas dicotomias.
Na sequência, Guacira traz a
discussão as relações com as diferenças na escola, destacando os mecanismos de
classificação, ordenamento e hierarquização. Cita alguns posicionamentos
fixados pela escola como o treino de habilidades manuais para as meninas, a
separação nas atividades entre meninos e meninas, a diferenciação dos
brinquedos e das atividades desportivas, a representação da família típica, a
ambigüidade da expressão homem, a
linguagem aparentemente inocente e desproposital.
O
campo da linguagem recebe especial atenção da autora. Suas reflexões nos
conduzem a desnaturalizar algumas ideias que se cristalizam em nosso imaginário
ganhando status de verdades absolutas. Passamos a considerar tudo isso de algum
modo, como inscrito na "ordem das coisas”.
“A linguagem é, seguramente, o
campo mais eficaz e persistente — tanto porque ela atravessa e constitui a
maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito
"natural". (LOURO, 1997, p.65)
“A linguagem não apenas expressa
relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas
produz e pretende fixar diferenças” (LOURO, 1997, p.65)
“A linguagem é um turbilhão e nos
usa muito mais do que nós a usamos.” (LOURO apud Portinari, 1989, p. 18)
No quarto capítulo, Guacira
inicia questionado sobre qual seria o gênero
da escola. Sua reflexão passa pela compreensão de que “a escola é atravessada
pelos gêneros” (LOURO, 1997, p.89), o que é confirmado quando pensamos na
feminilização do magistério (representação da professora assexuada, materna ou
até solitária) ou na masculinização (quando da transmissão de conhecimentos).
Na verdade, também se trata de
uma construção social, histórica e cultural dos sujeitos e da escola. A partir
do gênero da escola, a autora questiona as atitudes patriarcais e sexistas no
capítulo seguinte.
É nesse capítulo que a autora
discute como promover uma educação não-discriminatória ou no mínimo menos
discriminatória.
A importância desse aspecto na
discussão do livro é de reforçar a necessidade de um olhar diferenciado, da
necessidade de transpor barreiras e limites e contribuir para a construção de
um conhecimento novo. Transformações que se efetivará a partir de políticas públicas
e das práticas cotidianas. A partir daí discorre sobre a educação sexual e
sobre como incluí-la na escola ou no currículo de forma a abranger o assunto
com a importância que exige na contemporaneidade, ou seja, além de uma esfera
puramente biológica.
No último capítulo, a autora discute sobre o feminismo afirmando que nenhuma ciência é desinteressada ou
neutra. Como exemplo, cita que a ciência foi feita pelos homens, brancos, ocidentais e de classe dominante que
determinaram o que era importante, em geral. Portanto, as idéias apresentadas
pela autora não representam “levantar bandeira” do feminismo, mas operar com
categorias analíticas instáveis, movimentando-se em um meio teórico que está em
constante construção e que acolhe a crítica como parte desta. “A proposta é,
portanto, ir além dos estudos meramente atentos a um superficial e momentâneo
interesse sobre mulher e gênero. O que se propõe são estudos que ultrapassem a
simples adesão temática, pesquisas que se disponham a um mergulho teórico mais
ousado – tarefa que certamente implica em desafios de outra ordem” (LOURO,
1997, p.152)
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